A Última tentação de Cristo: duas cenas que me fizeram valer o filme
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Neste domingo de Páscoa resolvi aproveitar uma das indicações de filmes clássicos e assisti “A última tentação de Cristo” do Scorcese.
O filme, baseado no livro “A última tentação”, do grego Nikos Kazantzakis, mostra um Jesus já adulto, no processo de emergência como pregador. Ele é apresentado como um homem atormentado na dualidade humana e divina, que oscila bipolarmente entre a covardia e a onipotência, cheio de medos, angústias, dúvidas, incertezas, conflitos e contradições, que não assume sua condição de homem - com suas necessidades e desejos - mas também medrosamente rejeita seu suposto papel de Messias.
A PRIMEIRA CENA
Após 2 horas de filme, num ritmo lento e complexo Jesus é finalmente crucificado. Próximo da morte, Jesus/Filho de Deus, poderoso e onipotente, brada para os céus “Pai, por que me abandonaste?”. Esta frase me intrigou desde a adolescência, quando tive os primeiros contatos com os Evangelhos. As explicações metafóricas dos estudiosos da Bíblia nunca me convenceram. No filme, um Jesus angustiado e terrivelmente sofredor olha em volta e vê, ao pé da cruz, uma figura angelical que declara que Deus está satisfeito com o sacrifício e que Jesus pode descer da cruz para viver uma vida humana normal – o que Jesus aceita prontamente.
E é aí que se explica a frase que tanto me intrigava desde sempre: Jesus/Homem, embora tenha anunciado aos apóstolos sua morte na cruz e ressurreição, era um homem aterrorizado que não assumia plenamente o papel de Messias, que tinha medo da morte e provavelmente não acreditava na ressurreição. Jesus/Filho de Deus, na sua onipotência, não podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Que Deus, seu Pai, fosse deixá-lo morrer. “Por que me abandonaste me deixando morrer?”, deveria ser a frase completa. Se eu vou salvar o mundo com meu sacrifício, por que não vens destruir meus inimigos como fizeste tantas vezes com Davi, com Sodoma e Gomorra, com o dilúvio?
É o grito da perplexidade, da impotência, do abandono e do medo do Homem diante da morte.
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Descido da cruz, “vemos Cristo se casar com Maria Madalena, ter filhos e envelhecer como um homem qualquer. Ele é feliz ante sua nova condição: de fato, nunca quis mais do que aquilo que passou a ter desde que, seduzido por um belo anjo, fugiu do sacrifício ao qual estivera destinado.”
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A SEGUNDA CENA
Casado e com filhos, “um dia ele se depara com o apóstolo Paulo pregando sobre o Messias, contando histórias da ressurreição de Jesus e de sua ascensão ao céu. Jesus tenta dizer a Paulo que ele é o homem sobre quem Paulo foi pregar e argumenta que a salvação não pode ser fundada em mentiras. Paulo responde que as pessoas sofrem e são infelizes, e que sua única esperança é a do Jesus ressuscitado, que salvará o mundo dos pecados. Paulo conclui dizendo que "o seu Jesus" é muito mais poderoso do que o "verdadeiro" e isso o levará a continuar seu trabalho de pregação.”
Esta foi uma cena curta que não teve o destaque merecido no filme e que passou em branco nas menções da crítica. A falta que senti de um destaque maior deveu-se principalmente a que o cristianismo primitivo adotado posteriormente por Roma tem seus fundamentos nas palavras de Paulo, um cidadão romano convertido ao cristianismo que, sendo mais esclarecido do que os outros apóstolos, criou uma versão mais palatável e ao gosto romano e dos judeus insatisfeitos com o judaísmo.
A relevância está no fato de que a cena e a verdade histórica repetem a afirmação atribuída a Nietzsche de que “não existem fatos, apenas interpretações” ou versões dos fatos.
Em outras palavras, não importa se Jesus realmente existiu como homem ou com natureza divina, se foi crucificado, se ressuscitou dos mortos. O que importa são as palavras que transmitiram e que perpetuaram a mensagem de amor e de esperança de uma vida melhor e mais justa, embora a própria Igreja Católica tenha transgredido esses preceitos inúmeras vezes nos milhares de anos de sua existência. Da mesma forma, outros livros sagrados e a história da humanidade contam muitos acontecimentos que não tem relevância como testemunho da verdade, mas sim pelos seus efeitos na vida dos homens. Toda a história da humanidade está recheada de versões diversas que foram criadas e/ou manipuladas dependendo do ponto de vista e do interesse de quem as escreveu e de onde, quando e por quem são contadas.
THE END
Só para matar a curiosidade, o filme termina com um Jesus envelhecido que descobre que foi enganado pelo anjo/satanás ao pé da cruz, e que sucumbiu à sua última tentação (depois daquelas que resistiu no deserto) - a de viver e desfrutar dos prazeres da vida humana. Suplica então a Deus para voltar à cruz e, num retorno no tempo, cumpre o seu destino de crucificado/salvador do mundo.
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A pergunta que fica para os cristãos ao fim do filme, do livro ou do Evangelho é se o mundo foi efetivamente salvo, se mudou para sempre e para melhor, com prega o Cristianismo. Se Ele não tivesse morrido na cruz, a injustiça, o ódio, as guerras, manipulações, interesses econômicos sobrepondo-se aos dos seres humanos, e outros tantos males seriam diferentes - ou piores?
Com a palavra as religiões não-cristãs.
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