Um guarda-chuva viajado
por Edison Pratini
Era um guarda-chuva comum, longo, preto, de cabo de plástico, comprado em um quiosque de esquina num dia de chuva, mas tinha uma história nada comum.
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Conhecer o Egito! Eu mal podia acreditar que agora teria a oportunidade de realizar um dos grandes sonhos da minha vida!
Aos meus doze ou treze anos* encantei-me com as aulas de história que falavam do Egito, das múmias e da fabulosa da máscara de Tutancâmon.
Tomei gosto pela leitura. Minha mãe, professora primária da velha guarda, feliz por me ver menos consumidor do Pato Donald e outras revistas em quadrinhos – na opinião dela tão alienantes e prejudiciais quanto os smartphones de hoje – investia muito mais em livros do que em brinquedos.
Minhas primeiras referências sobre o Egito, além das aulas de história, foram as histórias aventurescas da Bíblia para crianças. Vendo o meu interesse, minha mãe me presenteou - entre as leituras fáceis de Julio Verne, Sherlock Holmes e outros - o meu primeiro livro “sério”: um volume de mais de 400 páginas chamado “...E a Bíblia tinha razão”.
Devorei o livrão e logo quis saber mais sobre os Indiana Jones da época e suas aventuras arqueológicas.
Queria ser arqueólogo, decidi.
Depois de muitos anos de fascínio pela história antiga, foi um outro clássico da arqueologia para leigos - Deuses, túmulos e sábios – que acabou dando um rumo para o futuro do meu sonho arqueológico. Junto com o encanto das descobertas e da riqueza do Antigo Egito vieram as grandes constatações e desilusões: eu não era um lorde inglês e com os meus próprios recursos e formação arqueológica em Porto Alegre era improvável que conseguisse ser um Aventureiro Descobridor no Egito; já na Terra Tupiniquim, ser arqueólogo significava enveredar-se pelo mato e descobrir uns poucos instrumentos indígenas provavelmente da época do descobrimento, coisa que os geólogos já faziam com competência.
Mas o pior de tudo foi a descoberta que, a não ser que houvesse um patrocínio milionário, eu teria que ir com poucos recursos para lugares inexplorados, desertos e selvagens, carregando muitos quilos de instrumentos e equipamentos, explorar e escavar durante dias, semanas ou meses, passar fome, dormir exposto ao tempo, sem acesso a uma mísera latrina, e viver sujo com pouco ou nenhum banho.
ISSO ERA DEMAIS PARA A MINHA PERSPECTIVA DE FUTURO!!!
Desiludido dos meus sonhos arqueológicos, acabei escolhendo uma profissão que se adaptava mais ao meu perfil urbano, higiênico e apreciador das coisas boas da vida: formei arquiteto.
Mas a vontade de descobrir o mundo nunca me abandonou. Tinha no sangue a vontade de viajar. Desde criança viajava muito de trem e carro com meus pais e minha irmã. Muitas das nossas férias passávamos no Uruguai ou Argentina – trajetos de 800 e 1.100 km de Porto Alegre – porque a moeda deles estava desvalorizada e meu pai dizia em tom de brincadeira: para economizar eu não meço despesa!
Mais tarde, formado, podia sustentar minhas próprias viagens e saía sempre que o dinheiro dava. Depois de conhecer montanhas, vulcões e a neve, fui em busca do mar. Mergulhava, e minhas saídas eram ditadas pela água mais límpida e a previsão do tempo no local.
A carreira acadêmica e a pós-graduação me proporcionaram muitas oportunidades de conhecer o mundo, mas conhecer o Egito, com todas as implicações de segurança, terrorismo e situação política, continuava a ser um sonho remoto que nunca tinha passado pela minha cabeça.
Agora o sonho estava prestes a ser realizado: fora convidado para um congresso de arquitetura e computação em Alexandria, o berço da mais famosa biblioteca da antiguidade!
Minha esposa Marina – funcionária da ONU, auto-apelidada viajante-Incurável e também deslumbrada pelo Egito Antigo - estava tão empolgada quanto eu, ainda mais que tínhamos a chance de emendar com as nossas férias! Seria um mês de sonho, sem contar os meus dias de congresso.
Como o nosso voo para o Cairo fazia conexão em Paris, resolvemos fazer uma escala de dois dias para curtir um pouco das belezas da Cidade-Luz.
Era novembro e não estávamos preparados para o frio daquela Paris de céu nublado. Na saída do metrô próximo à Torre Eiffel fomos surpreendidos por uma chuva fina e gelada. Corremos para nos abrigar em um quiosque no meio do caminho. Era um desses lugares que vendem de tudo para os turistas necessitados como nós.
E lá estava ele, bem na entrada, enfiado em uma imitação de vaso romano: o guarda-chuva, nossa salvação para seguirmos a caminhada por Paris.
Saímos, Marina e eu, grudados um no outro, tentando ao máximo evitar a chuvinha de vento que nos batia nas pernas.
No dia seguinte embarcamos para o Cairo.
Eu quis deixar o guarda-chuva no aeroporto, mas Marina foi taxativa: nem pensar! Pode ser chinês, mas é um guarda-chuva comprado EM PARIS!
E já conhece o Louvre!
E lá fomos nós, rumo ao deserto, portando o guarda-chuva no braço, feito um cavalheiro londrino sempre prevenido contra a chuva.
Incorporei o personagem hollywoodiano e brandia o guarda-chuva como um espadim, preparado para enfrentar os beduínos ou quaisquer tempestades no meio do deserto egípcio.
Nos próximos trinta dias o guarda-chuva nos acompanhou com as malas por todo o Egito, para estranheza dos locais, sempre prontos para uma ironia. Nesse tempo subimos o Nilo de navio, exploramos o templo de Luxor e de Karnac, deslumbramos na monumentalidade de Abu Simbel, andamos de camelo ao redor da Esfinge e das Pirâmides de Gizé, maravilhamos com a riqueza do Museu do Cairo, sobrevoamos o Vale dos Reis de balão, visitamos a tumba de Tutancâmon e outras escavações, entramos no Templo Mortuário de Hatexepsute, mergulhamos no Mar Vermelho, percorremos o deserto do Sinai, descobrimos a Abadia de Santa Catarina e escalamos até o topo o Monte Sinai onde supostamente Moisés recebeu as Tábuas da Lei.
Abençoados e agradecidos por toda essa experiência, partimos encantados e felizes para os nossos próximos destinos: Marina e o guarda-chuva de volta ao Brasil, e eu para meu congresso em Alexandria.
Mas, senhoras, senhores e outros, a história não termina aí.
O guarda-chuva parisiense ainda nos serviu em Brasília durante alguns anos, chove pouco, mas ele estava sempre lá.
Em 2014, resolvemos largar tudo e sair a andar pelo mundo.
Ainda levamos três anos – entre trabalho e outras viagens - no processo de desapego emocional e material, e venda de tudo o que não iria nos acompanhar nas andanças. Depois de muita pesquisa e contabilidade, a ideia foi a de ser verdadeiramente nômades, levando nossa “casa” como um caramujo, em um veículo, camionete ou motorhome.
No final de 2017 partimos para a vida nômade, a partir de Portugal.
Levamos duas malas grandes, duas malas de bordo, dois sacolões, duas mochilas...e o guarda-chuva parisiense.
Em Portugal, optamos pela compra de um SUV Mitsubishi Outlander, carro grande, robusto e confortável que comportava toda a nossa bagagem, incluindo o guarda-chuva.
Nos próximos dois anos rodamos em nomadismo, perambulando por quase toda a Europa, de Portugal até a Rússia.
Sempre estacionávamos - como até hoje - nas ruas perto dos apartamentos alugados por temporada e andávamos seguros e confiantes com todos os nossos pertences no carro – nossa “casa” -, devidamente escondidos com uma cobertura de tecido preto.
Uma noite, porém, em Roma, nossa “casa” teve o vidro traseiro quebrado e tudo o que não era básico e que tínhamos transportado para o apartamento foi irremediavelmente roubado: vinhos de safra, um terno feito sob medida na Tailândia, roupas de frio compradas nas pechinchas mais fashion da Europa, uma craviola inventada pelo violonista Paulinho Nogueira, sapatos italianos, e até o guarda-chuva foram levados.
Daí por diante aprendemos a andar mais leves na nossa vida nômade, até porque a maioria das coisas roubadas não eram recuperáveis emocional e financeiramente – e o mesmo valia para o guarda-chuva parisiense.
Outros guarda-chuvas apareceram na nossa vida, mas nenhum teve o valor e o amor do guarda-chuva parisiense.
Este é o fim de uma história de amor, aventura e emoções que continua ainda hoje.
THE END
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* Para preservar a idade cronológica dos protagonistas desta história as datas iniciais foram intencionalmente omitidas.
Qualquer semelhança desta história com fatos e pessoas reais não é absolutamente mera coincidência. É a mais pura e sacrossanta veritá, doa a quem doer.
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