Como lágrimas na chuva

por Edison Pratini

Uns pagam antecipadamente o seu enterro, outros compram um título do cemitério.
Eu, apenas escrevo meu pré-epitáfio, inspirado e parafraseando o androide Roy Batty – ator Rutger Hauer – no monólogo “Tears in rain” (https://youtu.be/jvFYgELj2X0?si=4s47ZioDXQ2pclXk - cena final do filme Blade Runner de 1982):  
      
“ ...All those moments... will be lost in time... like tears in the rain.
Time to die.”

Se um dia eu estiver incapacitado para completar, cá está ele, meu pré-epitáfio.
Uma lápide virtual provisória, à espera de novas experiências e vivências, para ser materializada como entalhe num bloco de madeira rústica de casca de árvore e, num ritual Kuarup*, ser jogado em alto-mar junto com as cinzas da minha cremação.


Pré-Epitáfio

Eu vi e vivi tantas coisas...que o comum dos homens custaria a acreditar.
Voei além das alturas dos condores para jogar-me em queda-livre no espaço vazio e aterrizar suavemente na terra.
Explorei cavernas submarinas nas águas cristalinas azul-turquesa dos mares do Caribe.
Andei com as nuvens em montanhas nas mais altas moradas dos homens.
Vivi nômade - por muito tempo percorrendo terras e países, como um caramujo.
Aprendi línguas - e o andar da humanidade - nos riscos, nas pedras, nas escritas, nas aldeias, nos castelos, nos museus, nas ruas, nas cidades.
Vi o sol dourar os topos dos rochedos de Petra, nascer nas montanhas do Sinai e tingir de sangue as areias do deserto no Egito.
Escalei o Monte Sinai e revi, com Moisés, os Dez Mandamentos.
Andei em camelos, subi Pirâmides. No outro continente, adivinhei o intrincado sobe-e-desce de Machu Pichu.
Vi e ouvi o estrondo da Pororoca no Amazonas e o encontro das águas no Rio Negro.
Vivi o Kuarup * numa aldeia remota do Xingu.
De motocicleta, cruzei e percorri curvas estonteantes nos passos dos Alpes da Áustria até a França.
Naveguei por rios e mares, do Nilo ao Amazonas, do Danúbio ao Mississipi, do Atlântico ao Adriático, do Pacífico ao Mar do Norte.
Vi e ouvi o ronco de cataratas, do Iguaçu ao Niágara.
Perambulei por nevados, congelei nos Andes da Colômbia.
Subi vulcões, olhei crateras fumegantes e deslumbrei com o brilho de erupções no escuro da noite.
Encantei com a leveza da queda de blocos glaciares na Patagônia.
Derrapei na neve e gelo de estradas nos Pirineus.
Impregnei-me de incenso nos templos budistas e gastei degraus pelas montanhas da China.
Vivi anos dourados, anos de chumbo, anos de paz e anos de guerra.
Acreditei e desacreditei nos homens e na humanidade.
Vivi o comum, o bom, o ruim, o extraordinário, o belo, o feio, o medíocre e o criativo.
Tive um filho, plantei uma árvore, escrevi um livro.
Vivi um amor nascido de um encontro virtual e tive uma companheira de vida plena.

Todo esse viver será perdido com o tempo...
Como lágrimas na chuva.


Não lamento, vivi feliz. Time to die.


*O KUARUP


Kuarup
O Kuarup é um ritual indígena realizado pelos índios da região do Alto Xingu, Mato Grosso, para celebrar a memória dos mortos e liberar suas almas para o mundo espiritual. O ritual é centrado na figura de Mawutzinin, o demiurgo e primeiro homem do mundo da sua mitologia. Durante as celebrações, que duram dois dias, há comida, danças, cânticos, rezas e o momento das lamentações - quando são erguidos troncos de madeira pintados e enfeitados com faixas de cor amarela e vermelha e alguns objetos do morto. Cada tronco representa um morto. Nessa cerimônia, os índios choram pela última vez a partida dos seus entes queridos – no fim, os troncos são jogados às águas e a festa marca o fim do período de luto.

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